segunda-feira, 18 de abril de 2011

O Jejum dos primogénitos

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Quando o sol se escondeu, ontem à tarde, dia 17 de Abril de 2011, muitos dos primogénitos de famílias judaicas espalhadas pelo mundo começaram um jejum que se estende por todo o dia de hoje. É um momento nacional, vivido à escala universal. Ou seja, não é apenas uma realidade em Israel, mas em todo o lado onde exista um judeu primogénito disposto a agradecer a Deus pelo livramento operado na décima praga do Egipto, e que antecedeu o Êxodo dos filhos de Jacob.
Há, obviamente, formas de isenção deste jejum. Muitos o fazem, mas são também muitos os que querem manter a tradição. Destes, todos os primogénitos – sendo eles homens que já cumpriram o seu Bar-Mitsvah* – devem jejuar durante o dia que antecede esta noite do Seder. Mas, quando o jovem ainda não chegou aos treze anos de idade necessários para o Bar-Mitzvah, então, o pai, primogénito ou não, jejuará por ele.
* Bar-Mitzvah Significa literalmente “Filho do Mandamento”, e refere-se à cerimónia celebrada pelos rapazes que completam os treze anos de idade, e que estipula o momento em que passam a ser espiritualmente responsáveis pelas suas escolhas e actos. Na verdade, é a sua emancipação espiritual da tutela dos pais.

A noite dos primogénitos
“E aconteceu, à meia-noite, que o SENHOR feriu todos os primogénitos na terra do Egipto, desde o primogénito de Faraó, que se sentava em seu trono, até ao primogénito do cativo que estava no cárcere, e todos os primogénitos dos animais.   E Faraó levantou-se de noite, ele, e todos os seus servos, e todos os egípcios; e havia grande clamor no Egipto, porque não havia casa em que não houvesse um morto.” – Êxodo 12:29-30
É quase meia-noite nesta terra do Egipto. Apesar de ser tão tarde, as ruas não estão totalmente desertas. À vista, nenhum dos filhos de Jacob – há sim, muitos egípcios. Na verdade, famílias inteiras correm de um lado para outro, lavando, limpando, separando, colocando o gado em abrigos mais seguros, tentando salvar do meio da ruína alguns dos seus poucos haveres poupados durante os já muitos castigos infligidos sobre o povo. O gigante chamado Egipto ainda está de pé. Mas as feridas são muitas e profundas. Atingido de morte, a capacidade de reagir já é pouca. Resiste, como grande nação que é. Mas, à mercê de qualquer pequeno abalo que lhe pode ser fatal, tenta que ninguém lhe adivinhe o momento de fraqueza. No entanto, estes homens e mulheres não têm consciência que é muito mais do que um simples abalo aquilo que está prestes a acontecer-lhes.
Falou Deus a Israel como um pai fala a um filho a quem está disposto a defender com tudo o que é necessário. E não só entendemos no texto o sentido dessa protecção, reflexo do carinho que o Senhor nutre pelo Seu povo, como também damos conta de um espírito de justiça que finalmente se faz presente. Como se ao brado da Voz: “Chegou a Hora”, se juntasse também agora o som do shoffar que transformará um grupo de escravos em nação, e a conduzirá rumo à liberdade. O próprio Senhor sairá do Seu lugar e julgará a causa de Israel, povo escolhido, povo querido, a menina dos Seus olhos (Deuteronómio 32: 10; Zacarias 2:8).
Já é meia-noite (11:4), e Deus sai pelo meio do Egipto em defesa desse filho primogénito (4:22), calando a boca de todo aquele que ainda estava disposto a opor-se-lhe (Êxodo 11:5). Nunca ninguém antes viveu nem ouviu contar uma experiência como esta. Por isso, esta noite é uma carta fechada. Dentro das casas, entre os hebreus, a verdadeira fé está à prova. Somente a sua fé – nessa altura ainda não esmiuçada pelos teólogos, mas desde sempre compreendida pelos justos – pode ajudar a vencer estes primeiros momentos de apreensão. Dias antes, a ordem tinha sido passada a cada tribo, a cada família, a cada casa, a cada homem, até todos eles estarem inteirados sobre como agir neste tempo determinado. Estão cientes que nesta noite a morte virá para cobrar e para reinar. A separá-los e a defendê-los dessa certeza, estará apenas o sangue de um cordeiro marcado na porta que dá para o Egipto. Na verdade, só uma fé enorme no Deus que claramente ainda não os desamparou pode descansá-los na eficácia daquele sangue. O cordeiro foi virado e revirado à procura de algum defeito que o desqualificasse. Mãos experientes tinham-no examinado, muitos olhos ansiosos acompanharam esses gestos à procura de qualquer mazela. Há três dias que está separado dos outros, segundo a palavra que Deus deu a Moisés (12:3). Nele, afinal, no cordeiro, repousa o segredo e a força da redenção. Constatada a sua perfeição, um molho de hissopo (12:7, 22-23) ajudou a marcar as ombreiras da porta e a verga com o seu sangue.
Contrariando um estranho silêncio, contrariando aquela acalmia nervosa que a noite tinha trazido consigo, começam-se a ouvir gritos de lamento e dor. Primeiro ao longe, depois mais perto, depois por toda a parte. Aumentam de tom, como se todo o Egipto se lamentasse, como se fosse pai e fosse mãe junto dos filhos que sofrem. A terra treme num esgar de desespero e repulsa. E, nos momentos que se seguem, parece que até o Nilo grita e geme. Finalmente, a morte sentou-se no trono. O Destruidor ceifa livremente na terra do Egipto. Reclamando os seus molhos, a sua colheita, entra nas portas onde tem legitimidade e sai, trazendo consigo as primícias de cada família, tanto de homens como de animais, tanto de ricos como de pobres.
À medida que a noite avança e o clamor aumenta no ar, os hebreus começam a aperceber-se da sua imunidade. Olhares apresados movendo-se no nervosismo da noite confirmam, sem palavras, que estão a ser poupados. E somente estão a ser poupados porque aquele sangue inocente que está do lado de fora da porta, os defende das mãos do Destruidor. Abrigados em casas simples e frágeis, o sangue do cordeiro morto naquela tarde de 14 de Abibe mostra-se, contudo, poderoso para os colocar completamente a salvo da acção da morte (Êxodo 11:23). Os primogénitos podem descansar. Nada lhes sucederá.

Eduardo Fidalgo

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